Partido

Dobrou cuidadosamente as páginas e colocou-as de lado. Deixou-se cair ali, em meio a profusão de almofadas. Não via o teto. Não via a janela, nem via o céu. De olhos fechados via apenas ele. Suspirou e riu. Ria de si mesma. Ria de sua tolice infantil. Ria sobretudo do sentimento ingenuo que nascia e crescia a cada leitura, a cada olhar a cada sorriso.
O celular começou a tocar insistente a seu lado. Ignorou-o. Sabia quem era, e ainda mais, sabia que não era quem queria que fosse. Ele não ligava, nunca ligava. Apenas o outro, sempre o outro. A musica programada para o número dele tocou novamente. Resignada, atendeu, mecanicamente.
Ele sempre lhe ligava, tão atencioso. Sorrindo, brincando, fazendo-a rir. Eram tão parecidos em certas coisas. Tão proximos. E distantes. Ele não a fazia imaginar e sonhar como o outro. Não a fazia suspirar e desejar. Estavam juntos a três semanas, e mesmo assim, era naquele que seus labios nunca havia tocado em quem pensava, com quem sonhava.
E já estava sonhando acordada de novo. Com ele de novo. Desligou o celular e jogou-o a um canto. Sairia com ele, novamente. Já esperava por aquilo. Afinal saiam juntos sempre. E seria outra noite perdida entre beijos e sussuros, para adormecer pensando em outro.
Esticou o braço e pegou novamente as folhas de papel. Os textos, os poemas, os contos, as palavras, as virgulas e os pontos. Tudo transmitia-o inteiramente. Eram, cada uma das linhas, uma confissão de si mesmo. E a cada confissão dele, ela apaixonava-se mais. E a cada conversa rapida pelos corredos, ela apaixonava-se mais. E a cada sorriso de longe. E a cada troca de olhares escondidos. Sua imaginação voava levada pelas ideias de um. Seus braços agarravam-se levados por beijos de outro.
Seu pobre coração esmigalhado, só deixava-se levar, desejando acima de tudo, juntar dois homens em um só. Consiliar as ideias aos braços. E beijar os labios daquele que a faz voar. E voar nas ideias daquele que a faz beijar.
O celular tocou novamente. Era ele. Bufou irritada, sempre ele, na hora errada. Brigaram. De novo. Por um outro motivo bobo. E acertaram-se novamente. Por um beijo ardente. E ao deitar de noite sonhou com letras, versos e prosa de uma presença ausente.
Largada pelas almoçadas, deixava o vento bater-lhe a fronte. Levar embora a confusão, e clarear-lhe a decisão. Pesava. Sentiá-se traindo. Aos dois. Sentiá-se suja. Estar com um enquanto sonhava com o outro. Querer um enquanto a mente entregava-se a outro. Tão diferentes entre eles. Tão parecidos com ela. A confusão dentro dela tão grande. Espremida no peito por tanto tempo. E por não aguentar mais. Uma gotinha de dor escapou, e foi escorrer rosto a fora, brincar com o vento e dançar-lhe nos lábios. O gosto doce e amargo da incerteza.
A campainha tocou. Devia ser ele. Vierá buscá-la para saírem. Levantou-se, deixou as almofadas, companheiras consoladoras, e parou frente ao espelho, inimigo revelador. Os olhos inchados. O nariz vermelho. A boca brilhando. Estavam todas ali, as evidencias de um sofrimento contido. Escondeu-os com maquiagem. Arrumou-se, pegou a bolsa e saiu.
Saiu para ver que se enganara. Não era um e sim o outro. O coração disparado a porta. Congelada pela surpresa de ve-lo ali. Marcado tão claramente pelos mesmo sintomas de sua doença. Ele sorriu ao ve-la. Sempre sorria. Delicadamente ergueu a mão e tocou-lhe o rosto. Secou-lhe uma lagrima. Ela riu, não escondera tão bem assim os sinais de sua luta.
Cegos e sem direção, os corpos de aproximaram. Inexperientes nas mãos um do outro. O primeiro toque. O primeiro sussurro. E ao estar bem perto (podia mesmo ver as ruginhas dos olhos, os cilios bagunçados, as pintinhas no olhar) fechou os olhos em uma alegria muda. E em uma esperança sussurante, os braços e lábios experimentaram juntos voar. E acompanhar as mentes que seguiam adiante.
Agarrada as letras, aos lábios e ao homem. Voou.

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