Amigos Perdidos

Enfiou a mão na mochila e vasculhou pelas chaves. Olhou para o chaveiro que tinha umas peças faltando e sentiu-se tão vazia quanto a peça incompleta. Era uma sensação estranha que começava na boca do estomago, e subia até alojar-se no alto da garganta, sem subir ou descer.

Apressou-se pelo curto caminho até a porta, a luz do poste mostrava sua respiração na noite. Entrou em casa e atirou a mochila, subiu diretamente para o quarto, pegou o livro sobre a bancada e jogou-se na cama. Bateram na porta, o quarto mantinha-se em silencio, bateram de novo, continuou sem dizer nada.

As letras a sua frente não tinham foco algum, dragavam-na para dentro, em espiral, em um furacão para dentro de si. Tudo rodava na sua mente, as imagens, as falas, não conseguia organizar-se. Os sentimentos voltaram a tona, não deixavam com que pensasse claramente ou sequer sentisse, estava novamente em um misto de fúria, tristeza e indignação.

“Era noite e o bar estava escuro, parcialmente iluminado por luzes que por vez ou outra brilhavam, sem realmente clarear algo. Tocava algo com uma batida forte, e ela mexia o corpo junto com a música. Ele se aproximou como sempre fazia, mas dessa vez sorria diferente. Continuou dançando, e ele se aproximou, ela foi andando para traz até encontrar a parede, fugiu para o único lugar possível, abaixou a cabeça. Ele insistiu, ele tapou a boca com a mão. Ele foi embora, ela voltou a dançar.
Horas depois, o lugar estava quase vazio, ele disse que precisavam conversar, ela concordou. Ele disse coisas que a magoaram, e no começo ela exibia apenas uma expressão de indignação, depois ao perceber que ele falava serio, começou a chorar. Ele continuou falando, e ela sem aceitar, sem entender, extravasou o que sentia em um tapa no meio do rosto dele. Virou as costas e andou em direção ao taxi que a esperava.”

Aquilo tinha sido o final. Não sabia se era o final de tudo, ou apenas o final de um capitulo ruim a espera de uma retomada algumas páginas a adiante, na verdade, não tinha como saber. Sentada na cama, os dedos esbranquiçados por apertar o livro, encarava ora as palavras, ora o teto. Não via nada realmente, tentava em sua mente, formar uma lógica, um sentido para o que havia acontecido.  A sua frente via apenas o passado em conjunto.

Jogou o livro e levantou-se, andou de um lado para o outro. A cada passo levava uma das mãos ao cabelo e baixava a outra. Parou e virou-se para a janela com sua cortina esvoaçante. O vento revirava seus cabelos. Apoiou as mãos no parapeito e pulou para o telhado onde deitou-se ao sol. Tirou do moletom velho um maço de cigarros amassado e um zippo gasto, em um gesto mecânico acendeu um e colocou-o na boca.
Gestos mecânicos e automáticos ajudavam-na a pensar, era como se todas as coisas banais fossem limpas de sua massa cinzenta e ela pudesse pensar no que era realmente importante. No momento era realmente importante descobrir como aquela amizade podia ser classificada como incompleta. Eram iguais, não idênticos, mas iguais. Desde o momento que se conheceram, eles haviam se sentido ligados de alguma forma. Ela gostou dele pelo jeito estranho de falar, ele se aproximou dela pelo corte de cabelo diferente. Eram uma dupla singular, mas que dava conformidade ao conjunto, de alguma forma.


Ele sempre dizia, em meio aos risos, “Você é o meu eu-feminino, e eu sou seu eu-masculino”. Eram realmente parecidos, não na aparência, ele era moreno e ela loira, ele tinha olhos negros e ela azuis, eram quase idênticos na maneira de pensar, de agir. Uma amizade que surgira do nada, mas que completava a ambos. Nas tardes passadas sob a proteção da sombra que a árvore fazia. Aquela era a árvore deles. Haviam marcado seus nomes na casca da árvore, era um pacto. Lembrava-se quando, numa tarde qualquer, ele havia pedido a mão dela em casamento. E ela negara-lhe. Devia ter sido ali que tudo começou, e continuou com as recusas freqüentes dela. Até que ele desistiu, deveria ter percebido que afastara-se muito dele depois daquilo. Não, ele afastara-se dela. Mesmo quando muito tempo depois, haviam combinado de casar quando aos trinta e cinco anos ainda estivessem solteiros, sozinhos e sem um grande amor, ainda assim, não estavam mais tão próximos.

Sem levantar-se atirou a bituca longe, acendeu outro. Dos olhos semicerrados escorreu uma lagrima.

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