Não sei

Olhou para ele com uns olhos que não eram seus. Não eram porque não poderiam ser, não lhe pertenciam, não aquela tristeza profunda de uma alma ferida. Olhou muda, porque não poderia falar, como diria a alguém que amava profundamente que não poderia dividir seus segredos mais profundos com ele? Queria, mas não poderia, ele não tinha forças ou a estrutura para lidar com suas angustias, uma mente perturbada pelo sótão e pelo porão da sociedade.

Era e sempre fora uma alma conturbada, levada a extremos, habituada a inquietude. Não poderia nunca ser diferente, não que não quisesse, era um de seus maiores desejos ser diferente do que era. Mas não poderia, devido a natureza de seu ser. Em seu âmago estava a raiz do pensamento. Tão profunda, tão densa, quanto uma abscissa, não poderia e não seria facilmente retirável de si, sendo um pilar edificador de si mesma.

O pensamento que a levava a angustia, a tristeza, a dor física, era o mesmo que a fazia levitar e transcender, elevar-se, não aos céus que estão vazios, mas ao homem, que está cheio, que é real e presente. Nada e tudo estavam dentro dela, o horror e o maravilhoso, os dois lados. Como explicar a alguém? Como dizer, eu não sei? Pois era, acima de tudo, formada de incertezas, de questões, de confusões, de teorias. Não tinha respostas, nenhuma delas, não para si mesma, pois queria sempre atingir o verdadeiro, o imutável, o concreto e a certeza, embora soubesse que nenhuma dessas coisas poderia existir (na verdade não tinha certeza sobre isso também). Poderia dar aos outros mil respostas, e eles acreditariam, pois não tinham a sua alma desesperada que se agarra em incertezas para não padecer em loucura. Tinha respostas para aqueles que não eram permeados por dúvidas.

Para ela, alma fadada a pensar, não tinha nenhuma, nenhum conforto, nenhum alento, nada. Tinha fome de respostas, fome de saber, e nada com o que saciar suas necessidades. Há aquelas como ela,  mas eles estão longe do mundo, que não quer respostas e não se importa com elas, eles estão solitários em sua busca, uma alcatéia de pensadores errantes.

Ele a olhou mais uma vez, inquisidor, aproximou-se, tomou-lhe a mão com ternura e olhou-a demoradamente nos olhos, como se quisesse de alguma forma, entrar-lhe na alma e descobrir quais feridas abrasadoras atormentavam a mente da garota. Ela piedosa, sustentou o olhar, em um último pedido suplicante de ajuda, que nunca chegaria. Deixou que ele olhasse e procurasse, quem sabe acharia em uma ruga de suas pálpebras, em uma pintinha de sua Iris, a razão de seu tormento. Mas ele não conseguiu passar pela janela e mergulhar no poço, não entrou e não viu, não achou. Sua alma continuou lá, por trás de seus olhos grandes, angustiada, e ele continuou ali, na sua frente, sem resposta.

Ela por outro lado, encontrou várias, olhando nos olhos sinceramente preocupados do rapaz a sua frente, achou carinho, achou medo e incerteza, achou também ali no canto a alma dele. Era uma bela alma, simples, leve, como as notas soltas do violão que ele sempre levava consigo. Não menos complexa e única por isso, apenas, diferente e leve. Era renovador e refrescante tê-lo junto a si. Ela quase poderia esquecer os pensamentos sombrios que lhe rondavam a mente e corroíam a alma.

“Eu não entendo” – ele sussurrou, e ela riu, não riu dele, riu dela. Ela sorriu e acariciou-lhe o rosto enquanto uma única lagrima solitária lhe marcava a face. “Nem eu” – ela sussurrou de volta.

A estranheza da situação e a familiaridade do sentimento a faziam rir da ironia. O silencio, segredo dos íntimos, era tudo o que os aproximava naquele momento, a ponte que os mantinha juntos. Não saber era o que fazia permanecer ali, tão pertos, tão unos. Não saber era, também, o que os estava afastando e os mantendo longe, pois ela não sabia sozinha, e ele não tinha opinião formada a respeito, já que não se importava em pensar sobre. Realmente fazer algo juntos, era, na verdade, o que os unia.

No rádio a música deles começava a tocar, e a voz calma de George Harrison preencheu o vazio deixado pelo silencio. O momento deles juntos já havia passado, e o silencio já havia se desfeito, ele sorria ao olhar para ela, seus pensamentos soprados para longe do “não saber”, os dela não. Ele a trouxe para mais perto, como sempre acontecia quando essa música tocava. Ela não cedeu como geralmente acontecia quando aquela música tocava.

Não, depois de dois anos, depois de tanto tempo, depois de tudo. Era tão leve estar ao lado dele, tão bom, era comum, normal e natural. Mas seus demônios pediam sangue e sofrimento, e não há sofrimento maior que o de pensar. A calma que a habitava nos últimos dois anos não iria continuar, todo o progresso que havia conquistado, toda a melhora, a levava agora a um outro lugar, mais alto, mais difícil de ser alcançado. Não iria regredir, não era essa a questão, apenas havia percebido que o pico era mais alto, e ficar parada a inquietava, precisava subir mais alto, não precisa conseguir, mas se obrigava a tentar.

Outras lagrimas caíram, e o sorriso dele se desfez. Ela não disse, não diria, ela nunca dizia, e ele sabia, a conhecia bem, não profundamente, mas bem. Um último adeus dava forma em um último beijo, que não sela um final, mas um novo começo, uma outra história. A de hoje começa com um último beijo, um olhar de até logo, algumas lagrimas, um “não sei” perdido no ar, e uma porta se batendo. Ela termina, em algum dia, em alguma hora, por ai, perdida no tempo de si mesma, forjada nos moldes que construiu para si, imperfeita.

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