Sons de uma vida

Não era exatamente uma questão de sentimentos ou de pessoas, talvez de memórias mal acabadas e histórias mal contadas. Mas era, definitivamente, uma questão de sons. A porta do carro batida pela única mão livre, enquanto a outra tentava equilibrar uma pilha de livros, a maleta e um copo de café. O toque do alarme preso em meio aos dentes que lutavam para acioná-lo, o som abafado de pés se desequilibrando ao atravessar a rua, o encontro da maleta surrada no portão, o som enferrujado do trinco sendo aberto, uma ou duas folhas de papel voando perdidas enquanto o último gole do café frio se perde em meio ao caminho até a porta de entrada.

Eram os sons habituais da casa velha, os ruídos de sua rotina, que a faziam sentir-se em casa. Pela janela do quarto, sempre aberta, vivia e ouvia os arredores da antiga casa da avó. Embora não ouvisse toda a história, fragmentos dela sempre se perdiam em meio o vento e a fumaça do esquecimento. Talvez a única lembrança inteira que tinha era do som do piano suavemente tocado pela avó quando era menina. O som das cordas sendo batidas tomavam a casa e sobrepunham todos os outros sons.

Tornou-se um habito com o passar do tempo associar sua vida, seus momentos aos sons, a música. Os pedais roçando na corrente, a janela castiga pela chuva, as unhas do cachorro arranhando o piso de madeira. Tateava cegamente procurando uma ordem, por um sentido, um acorde e uma melodia que fizesse suas notas esparsas terem sentido, contassem uma história, compusessem sua vida.

Se fosse contar sua história atual, contá-la-ia do final.

Um grande estrondo, uma pancada seguida pelo som ensurdecedor dos aplausos finais de um espetáculo. Não que houvesse um espetáculo, sequer havia uma peça, era, realmente, um monologo. Mas a sensação era essa, o sentimento era estrondoso, pesado, forte, destoava do restante da canção. Meu monologo começava com o som corriqueiro de um abrir de portas, era um bem-vindo, um bom começo. A porta realmente existia, o bom começo também. Atrás da porta não existia, porém, nada.

A confusão de sons e memórias são cartas embaralhadas de um carteado, soltas, difusas, uma chance em cinqüenta e duas de pegar a certa. O refrão era o som conjunto e confortável de mãos que se encontram, do colchão que afunda, de lençóis jogados no chão, o roçar do tapete no meu chinelo velho, o rangido da rede sobrecarregada, o balanço do jardim que sede com o meu peso, as flores do pergolado que dançam com o vento, as xícaras de café pousadas sobre a mesa abandonada da cozinha, a televisão ligada sozinha na madrugada, o ressoar da sua respiração no frio, os risos abafados pela vergonha. Sinfonias compartilhadas e momentos somados, não a uma, mas a várias pessoas.

Diria então que agora é hora de uma pausa, um silêncio. Nas memórias e na música, porque algumas coisas só a sobriedade do silêncio é capaz de expressar. Cinco segundos é muito tempo, um piscar de olhos é uma eternidade, uma batida do coração toda uma era. Foi como se tudo se suspendesse, foi um adeus com sabor de até logo.  Uma construção complexa e confusa que começa a tomar forma e sentido, as peças embaralhadas organizam-se, as cartas põem-se em ordem. A lógica inegável de um processo aparece no horizonte da minha alma.

Minimamente ruídos imperceptíveis e indispensáveis começam a somar-se ao todo. O roçar da grama nos pés descalços, as folhas secas amontoadas a um canto, o espirrar do vidro de perfume no quarto ao lado, o calor do bolo que exala da cozinha, a bruma da manhã que condensa o orvalho, a neblina da noite que esfumaça a janela, os pios do filhote de coruja que vela a lua. Tão pequenos como eu mesma sou pequenina, tão imperceptíveis e suaves como eu mesma, ocultos pela imensidão de um mundo que se perde em si mesmo. Tímidos sons que me formam, me integram, me descrevem. E que encerram, em mim (e na música) seu fim seu princípio, enterram em mim o que são e o que sou, guardam do mundo insentimental a pureza de meus defeitos.

Ouço os sons lá fora, não fora da janela (que me integra tão bem) mas fora de mim. Tão altos, tão brutos e ruges, o rugir dos carros, o insano tintilar das moedas, o apito da registradora, o bater dos cabides, roupas raspando na pele áspera e impregnada de fumaça, nada parece natural ou integrado, é tudo tão impessoal. O folhear das páginas ácidas das revistas, os gemidos insanos da televisão, o chiar alternado do rádio, tudo tão apessoal e robótico, sequer precem vozes humanas, ou tanto pessoas reais, são apenas fabricados.

Uma borboleta bate asas na janela fazendo as folhas soltas rodopiarem pelo quarto, até caírem dançando até o chão. Da cama, deitada, olho de resvalo à bagunça formada sobre o tapete. Ignoro. Estico-me e coloco (delicada) a agulha sobre o disco de LP, ruído amigo que me convida a lembrar. O som antigo, um clássico, começa a tocar, e não estou mais em meu quarto, mas nas ruelas de Londres, é outro lugar, um outro tempo. Levanto-me sobre o protesto das folhas de papel, procuro na estante algo para combinar com o som que vibra da vitrola. Um filme antigo, em preto e branco, na antiga Nova Iorque, quando tudo parecia mais bonito e elegante por atrás da fumaça de cigarros e piteiras e vestidos pretos e homens pagavam pelo toalete das senhoritas.

O som do calor exalado pelo bolo começa a espalhar-se pela casa, não é o mesmo de minha infância, já que os sinos fúnebres da igreja há muito já tocaram pela partida de minha avó, mas meu pai (alfa solitário dessa alcatéia de dois) o faz tão parecido, é quase o mesmo som sabor. O estalar do aparelho me avisa do começo do filme, jogo-me na cama afundando-me entre os travesseiros e lençóis. O vídeo chia, a vitrola estala, o mundo se cala.

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